Publicado por: Samuel | Junho 20, 2018

Porque sim

Nunca adiar nada que se queira, porque quando chegar a hora, pode já não existir, pode já não se querer. E querer por já ter querido é fodidinho.

Publicado por: Samuel | Junho 11, 2018

Rapidez Enciclopédica

Fico assustado com o facto de a entrada da Wikipedia de alguém que faleceu estar já actualizada apenas alguns instantes após a notícia. Quem é que, sabendo dessa realidade necrológica, corre a colocar essa derradeira data dentro dos parêntesis e a trocar tudo para pretéritos tempos verbais? Que simples é a morte  enciclopédica.

Publicado por: Samuel | Maio 29, 2018

Por Exemplo

POR EXEMPLO

Por exemplo: os cheiros não têm nome
– Nem as nossas penas e alegrias.

Como separar o cheiro da alfazema, da urze, do beijo, dos corpos,
Da alfazema, da urze, do beijo, dos corpos?

As palavras cobriram com o seu mar
A paior parte da terra
E lá dentro já só vivem peixes mudos
E plantas meio descoradas,

Mas
Ameaçadoras
Ou aduladoras
Embateram impotentes
Contra as falésias onde
Começa o reino dos cheiros e da emoção.

Como dizer
O cheiro da alfazema, da urze,
Dos beijos ou dos corpos,
Ou disso tudo junto?
Só estando lá.

– Manuel Resende, “O mundo clamoroso, ainda”, Angelus Novus, p. 56, 2004

Publicado por: Samuel | Maio 24, 2018

Retoma

Escrever, não para dizer algo, mas como disciplina diária do pensamento, como teste de realidade, relato memorialista de um hipotético controlo sobre os dias.

Hoje semeei amores perfeitos num garrafão de plástico cortado pelo meio. Chegado aqui, aproximo-me dos meus avós, semeio cores em caqueiros.

Publicado por: Samuel | Maio 14, 2017

Vagas ligações pelo silêncio

all_that_is_hbr_fc_copySe a obra de James Salter fosse mais ampla, talvez este pudesse ser o meu ano “Salteriano” – isto é, com uma expressiva quantidade de obras suas lidas – , com três dos seus livros na minha lista de leituras, até ao momento: “A Sport and a Pastime” (1966), “Last Night” (2005), um livros de contos, e o seu derradeiro romance “All That Is” (2013). Nesta última leitura, “All That Is”, há uma crueza – como alías se nota nos outros livros – na narração da vida. Ela não tem de ser espetacular, nem tem de levar a conclusões claras ou revelações. A vida real tem momentos banais, imperfeitos, com os quais se lida, bem ou mal. Nem toda a acção tem consequências dignas de nota. Por vezes, fica apenas o silêncio sobre o mundo. E um aspecto que torna esta leitura interessante é o facto de em “All That Is” existirem duas ou três ocasiões em que Salter consegue criar um silêncio dentro do silêncio da leitura. A técnica não é nova: levar a narrativa a um ponto alto, fazer o leitor espectador de um idílio, e depois, em duas ou três frases, fazer tudo desmoronar, como se se criasse um vácuo pela passagem rápida da realidade e todo o nosso pensamento fosse sugado para fora de nós, só ficando um vazio, capaz de reconhecer a força do momento, mas incapaz de tirar qualquer conclusão. Curiosamente, um ardil também observado numa outra leitura recente, “Everyman”, de Philip Roth.

9780140180527-us[1]E, continuando a falar de literatura, é curioso que este ano haja em mim um forte apelo para a literatura Japonesa. Depois de Haruki Murakami me abandonar, há uns anos, algures a meio de “1Q84” – há limites para o que eu consigo tolerar e homensinhos a sair de dentro de cabras está para lá desse limite – , algo me impele a ler Kawabata e Mishima. São aquelas propensões inexplicáveis, que não surgem de qualquer recomendação, e desaguam em dois escritores divertidíssimos que cometeram suicídio. E a literatura Japonesa que conheço tem no silêncio e na contemplação um aspecto essencial de qualquer história e qualquer vida, em contraste com aquilo que conhecemos, por exemplo, da dinâmica citadina actual de Tóquio, onde o silêncio não existe, nas ruas, mas apenas surge conotado com a solidão profunda das pessoas. Veja-se, para citar um exemplo sobejamente conhecido, “Lost in Translation” de Sofia Coppola. O romance “Beauty and Sadness”, de Yasunari Kawabata, que abriu essas minhas leituras nipónicas, deste ano, talvez não marque o silêncio de forma ostensiva e explícita, mas acarinha os momentos de contemplação, os jardins, as paisagens e uma certa e meticulosa forma de organizar o tempo onde se deixa espaço para o silêncio. Observa-se isso logo no começo do romance, com a personagem central perdida em pensamentos durante uma viagem de comboio até Kyoto.

Deixando para trás as silenciosas japonesices, e passando para alguém que usa o cabelo em vaga alusão a um samurai (vide “samurai hair”), a letra de “Amar Pelos Dois”, levada ao Festival da Eurovisão – não, não fui dos que disse que a canção era fabulosa, não me entra particularmente no ouvido e não acreditei até ao fim -, com Salvador Sobral a terminar dizendo “O meu coração pode amar pelos dois”, trouxe-me à lembrança o texto como20ela20morre20tnsj20c2a9filipe20ferreira20l_460-252de “Como Ela Morre“, da autoria de Tiago Rodrigues – com uma forte piscadela de olho a Anna Karenina, de Tolstoi – levado à cena no Teatro Nacional de S. João, onde, a determinada altura, algo semelhante a esse verso é dito por uma das partes, numa discussão conjugal. Para quem têve oportunidade de assistir à peça, terá reparado que o texto se faz à custa de um diálogo  com o contexto teatral, com a peça a saltar para fora do cenário, para a sala. Por exemplo, por vezes os autores usavam os ecrâs onde surgiam as legendas do texto – a peça é falada em Português e Francês – para, num registo cómico, reforçarem o que tinham dito, apontando, olhando, repetindo, o que criava uma afinidade com o público e uma desdramatização do texto, quase sempre acompanhada de riso do público (e dos actores). Nesse contexto, quando o homem diz, em desespero, que “se a mulher não o ama, não há problema, porque ele consegue amar pelos dois”, há, pelo menos, duas reacções possíveis: a de quem olha para essas palavras como a catarse de um sofrimento profundo, de um desespero de amor; ou a de quem olha o homem como um egoísta, ridiculamente iludido de que numa relação, que tem dois lados, basta um para a sustentar, sem que a vontade do outro conte para alguma coisa. Enquanto na primeira se poderá ficar em silêncio, matutando nessa dor, na segunda podemos rir-nos dele, da sua patética ilusão. Mas houve quem classificasse o riso do público como uma profunda afronta ao valor das palavras que haviam sido proferidas. Se o nosso silêncio, enquanto ouvimos os outros, só nos permitir ouvi-los a pensar como nós, parco é em espaço. É um silêncio ensimesmado, uma lista de dogmas a cumprir, como a lista de compras que se leva para o supermercado. Talvez se possa caminhar sobre aquilo a que o poeta João Rios se referia, durante uma pequena conversa em Paredes de Coura, como um conjunto de possibilidades, a capacidade de olharmos para as coisas e admitirmos que elas podem não ser estanques, que a sua leitura se pode fazer percorrendo diferentes caminhos e, em consequência, chegando a diferentes lugares, mesmo que o lugar que busquemos – e que mais nos diz – seja apenas um deles.

E, para encerrar o tema Eurovisão – sem nunca lá ter entrado – de tudo o que se viu e disse sobre a prestação do Salvador Sobral no Festival da Eurovisão, há apenas um outro aspecto que me interessou. Que o silêncio que se instalou durante as suas actuações 666_aphrodite27s_childtenha surgido não da impossibilidade da multidão se expressar, por algo se sobrepôr à sua voz, mas porque era preciso calar para ouvir. Quem não sabe o silêncio, não pode almejar saber os outros. E falar de música lembra-me uma conversa de há umas semanas em que alguém nomeou Demis Roussos e eu fiz a ligação, perante uma cara de sofrimento atroz, até ao primeiro album dos Enigma – aquele, eventualmente o único digno de nota, pela sua diferença, com canto gregoriano e arfares pecaminosos, MCMXC a. D. – , via Aprhodite’s Child, 666, sahlep, Irene Papas, que arfou, alto e bom som, e Salvador Dali – que queria, mas depois não quis. Enfim, está tudo no Costas Ferris, minha filha.

E prosseguia a tarde de sexta-feira, feriado na terrinha e, apesar de não haver canto gregoriano nem monges da Abadia de S. Domingos de Silos, o Papa chegara a Fátima. No site da Rádio Renascença transmitiam-se imagens, em directo, da sua chegada à capelinha das Aparições. Quando o Papa chegou perto da estátua da Virgem, ficou em silêncio por alguns minutos, assim como todas as pessoas no Santuário. Quem nunca se calou foi o comentador da Rádio Renascença. Eu sei – regra de ouro – que para quem ouve rádio, a ausência de silêncio é a marca distintiva de que se continua sintonizado, mas nada soa mais estranho que comentar o silêncio. E depois lembrei-me que não é só na rádio que o silêncio tem de ser ocupado para que não se caia na ideia de que a emissão deixou de existir. A nossa vida está a tornar-se uma emissão de rádio. Por todo o lado as pessoas sentem o pânico de não estarem ligadas a algo, de não se mostrarem em movimento, de não participarem da emissão. Cada vez menos as pessoas conseguem aguentar o silêncio, a ausência de acontecimentos, o sentarem-se num restaurante, com amigos, num momento de silêncio, sem puxar do telemóvel. As crianças deixaram de ter momentos de completo e salutar aborrecimento. Está lá sempre a televisão, o tablet, o telefone, a aula de dança, de música, de teatro, de línguas. E, portanto, resumo a minha leitura da vinda do Papa a Fátima a esses minutos de silêncio, por achar que foram os mais importantes de tudo o que se passou. É fácil sentirmo-nos integrados em algo maior cantando um qualquer hino com uns milhares de pessoas – Psicologia das Multidões, etc. – , mas quão bem nos sentimos em silêncio no meio de uma multidão, que força é então a nossa? É essa multidão em silêncio que me fascina.

E consideremos, naturalmente, as imagens de pessoas que, à passagem do Papa, estavam a vê-lo através do telemóvel ou, de costas para ele, a tirar a selfie das suas vidas. Veja-se, a propósito, o brilhante cartoon de André Carrilho. Para elas, uns minutos de silêncio.

 

Publicado por: Samuel | Fevereiro 12, 2017

Emir Kusturica – Na Via Láctea

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O final do ano passado trouxe a estreia do mais recente filme de Emir Kusturica. Quis a sorte que, há umas semanas, algumas almas caridosas o fizessem chegar a um cinema perto de mim, já que “Na Via Láctea” – assim se chama e já explicarei porquê – nunca seria admitido em qualquer um dos 14 pipocódromos mais próximos. É interessante que um filme tão saudavelmente louco, que facilmente desperta o riso da plateia, deixe de ser interessante para as salas de índole mais comercial. Mesmo se olhado enquanto mero entretenimento para consumo de pipocas, este filme fica acima de muitos outros que circulam nas salas de cinema, às vezes durante semanas. É espantoso que um novo filme de Kusturica, que não lançava nada há anos, tenha uma única sessão, numa noite de um dia de semana.

O que mais me impressiona nos filmes de Kusturika é que a realidade, ainda que dura, desconjuntada, possa ser tão harmoniosa parte da vida. Cada vez mais, na sociedade em que vivemos,  a vida tende a ser ordenada, acéptica. Por outro lado, a realidade mostrada neste filme parece surreal, mas apenas por estar longe de nós, daquilo que vivemos no dia-a-dia. Estamos afastados de uma mecânica mais rudimentar da vida e deixámos de reconhecer algumas das suas peças fundamentais. Talvez seja por causa disso que filmes como este perdem terreno nas salas. Porque essa dactiloscopia dos dias precisa que se olhe para cada um desses mecanismos e se reconheça neles um peso, uma ordem. Sem isso, deixam de ser factos para ser efeitos, meros artifícios cénicos, facilmente ultrapassados por tantos outros.

Os primeiros minutos de “Na Via Láctea” – já explico de onde vem o título – são uma maravilhosa amálgama desta natural confusão dita vida. Este tipo de visão, embora na minha opinião Kusturica a leve até um patamar mais elevado, faz-me lembrar alguns filmes do realizador iraniano Bahman Ghobadi, principalmente “Turtles Can Fly”. E os mundos destes dois realizadores voltam a tocar-se através da participação de Monica Bellucci no filme “A Temporada do Rinoceronte”, de Ghobadi, e neste “Na Via Láctea” – calma, já digo.

A presença de Monica Bellucci evoca, em geral, a ideia de que estaremos – e aqui cito René, não o Descartes, o Artois de Allô Allô – perante “the falling madonna with the big boobies”. Não é o caso. Com a excepção de um nu muito rápido, com Monica Bellucci de costas, em contra-luz, já mais para o final do filme, nada se pode dizer sobre um eventual jogo cénico com a exuberância da sua imagem. Bem, talvez ela seja, por um momento muito breve, “the falling madonna with the partly hidden big boobies” – saudoso René Artois, saudoso Gorden Kaye. No entanto, esse papel um pouco mais lascivo pertence à sua colega atriz Sloboda Micalovic, embora não de forma demasiado oxtensiva. Ainda sobre Monica Bellucci, quando a vejo não posso deixar de pensar no filme que mais gosto dela: Malena. E, por alguma razão, talvez longe da coincidência, a outra personagem feminina, interpretada por Sloboda, chama-se Milena.

Kosta, interpretado por Kusturica, todos os dias faz uma viagem de burro entre uma aldeia, onde se encontram soldados, e uma quinta, para ir buscar leite, por entre os tiros da guerra – cá está a Via Láctea, Kosta apressando o burro, com os recipientes do leite atingidos por balas, derramando leite pelos caminhos. Nessa quinta, mora Milena, apaixonada por Kosta, e que quer efusivamente casar com ele. Ele diz-lhe que, talvez, quando a guerra acabar. Entretanto, Milena negoceia arranjar uma noiva para o irmão, que está na guerra, para ele ter com quem casar quando voltar. A noiva é Nevesta, interpretada por Monica Bellucci, que chega à quinta e que passa a ser responsável por ordenhar as vacas e tratar do negócio do leite. E, entretanto, uma guerra acaba, outra começa.

Na Via Láctea é facilmente reconhecido como um filme de Kusturica. Estão lá a atmosfera cómica, por vezes caótica, a música (a cargo do filho, Stribor Kusturica) e esse sentido de que a vida continua a acontecer, seja onde for. As únicas falhas que talvez lhe possam ser apontadas, e que o deixam um pouco aquém de se cumprir mais perfeitamente, referem-se, na minha opinião, a dois aspectos: o uso desleixado de efeitos especiais e a forma como Kusturica lida com o final. No que respeita aos efeitos especiais, a sua utilização em momentos chave, que atiram as cenas para um cenário de realismo mágico, um pouco desleixado, parece  despropositada e teria, provavelmente, sido bem substituída pela complexa técnica do fade out,  com melhores resultados. Pelo menos um momento importante do filme perde o seu impacto por causa disso. E depois, talvez os últimos quinze minutos, ainda que pudessem ser iguais, noutras circunstâncias, tenham resultado um pouco penosos num filme já longo. Até porque se sente um contraste grande, por essa altura – talvez intencional – e que, ao quebrar a continuidade, nos deixa um pouco à deriva.  Se o que se pretendia era uma rotura, seria preciso algo mais. Se não, ficar a meio caminho dá em nada, como se Kusturica não tivesse conseguido manter-nos na mão o tempo suficiente.

Cena do filme “O Carteiro de Pablo Neruda”…

Em português, “Quando um homem começa a tocar-te com as palavras, chega longe com as mãos.”. Fica tão mais bonito em italiano…

Publicado por: Samuel | Setembro 12, 2016

Feira do Livro do Porto 2016

A tower of used booksQuando alguns pensavam que a Feira do Livro do Porto estava perdida para sempre, depois de a APEL e a Câmara  Municipal do Porto não terem chegado a acordo para a continuação do protocolo que havia sido seguido em anteriores edições da feira, éis a mais evidente confirmação que há males que vêm por bem.

Sou assíduo frequentador das feiras do livro de Lisboa e Porto e este ano, tal como no ano passado, tive oportunidade de visitar as duas: a feira de Lisboa no Parque Eduardo VII e a do Porto nos jardins do Palácio de Cristal. A feira de Lisboa é enorme, prolonga-se por toda a zona central do parque e tem todas as editoras e mais alguma. Destacam-se as áreas gigantescas ocupadas pelos grandes grupos editoriais Leya e Porto Editora. Por outro lado, a Feira do Livro do Porto ocupa uma área mais modesta, de pavilhões espalhados ao longo do jardim, com as árvores a dar alguma sombra, esse bem precioso que falta em Lisboa. Este ano a Leya marca presença explícita no Porto, com um pavilhão em nome próprio, mas em formato mais modesto do que em Lisboa. A grande diferença entre Lisboa e Porto começa pela presença mais marcada de livreiros, i.e., gente de livrarias, do Porto e do Norte e, até pode ter sido coincidência, mas nos dois anos a que já fui ao Porto, neste novo formato, sempre tive conversas muito instrutivas com alguns livreiros e, por intermédio deles, fiz algumas descobertas de autores que não conhecia e de que passei a gostar. Essa proximidade, talvez pela diferença nas dimensões dos eventos, nunca a consegui alcançar em Lisboa. Depois, os jardins do Palácio de Cristal dão um ambiente diferente à feira e a animação que por ali circula, seja ela de um par de actores mascarados de Camões e Fernando Pessoa, seja um ilusionista ou um grupo de canto, dão uma vida e um dinamismo ao espaço que nos faz sentir bem ali. E, depois, existem os concertos, que de vez em quando ocorrem, que me levaram a sentar na relva a ouvir boa música com um saco cheio de livros repousando ao meu lado.

Os descontos em Lisboa até podem ser maiores, já que a APEL não permite que isso se faça no Porto, e até serve para ir comprar aqueles livros que estão na lista a um preço mais razoável. Mas a Feira do Livro do Porto tem vida e tem gente, gente que me pergunta se me pode dar uma sugestão e me aconselha, por exemplo, Luís Falcão. Gente que me apresenta autores e os contextualiza no panorama literário. E eu chego a casa, leio, e dou por mim a descobrir um autor fabuloso, de que nunca tinha ouvido falar. Aprender assim vale mais do que qualquer desconto.

Publicado por: Samuel | Julho 12, 2016

De Cyrano e Cristiano

CYRANO DE BERGERAC, Anne Brochet, Vincent Perez, Gerard Depardieu, 1990, (c) Orion Classics

CYRANO DE BERGERAC, Anne Brochet, Vincent Perez, Gerard Depardieu, 1990, (c) Orion Classics

Sempre fui um grande apreciador do trabalho de Gerard Depardieu. E foi por causa disso que vi o filme Cyrano de Bergerac – já deu para perceber que não é desse Cristiano que vou falar -, onde ele desempenha o papel do próprio Cyrano. O filme é baseado na obra homónima de Edmond Rostand e é muito fiel ao texto original, todo em verso. A história é simples. Cristiano queria conquistar Roxane, mas como só era jeitoso e não jogava futebol, não estava a ter grande sucesso. Então, Cyrano passa a instruir Cristiano sobre o que dizer e fazer para conquistar Roxane. Para além de várias cenas notáveis – o texto é mesmo genial -, começando pela cena inicial na ópera, em torno do famoso nariz de Cyrano, existe uma cena de que eu gosto particularmente, passada durante a noite, em que Roxane está à varanda e, cá de baixo, Cristiano vai recitando o que Cyrano, escondido, lhe vai sussurrando. Mas, a determinada altura, a comunicação entre os dois torna-se difícil. Roxane queixa-se que Cristiano está a falar de forma muito lenta e hesitante. Então, como é noite, Cyrano coloca o chapéu de Cristiano e continua ele a falar directamente com Roxane começando com estas palavras deliciosas, no original francês e em tradução (livre) minha:

Cyrano. C’est qu’il fait nuit,
Dans cette ombre, à tâtons, ils cherchent votre oreille.
Roxane. Les miens n’éprouvent pas difficulté pareille.
Cyrano.Ils trouvent tout de suite ? oh ! cela va de soi,
Puisque c’est dans mon cœur, eux, que je les reçois ;
Or, moi, j’ai le cœur grand, vous, l’oreille petite.
D’ailleurs vos mots à vous descendent : ils vont plus vite,
Les miens montent, Madame : il leur faut plus de temps !
Roxane. Mais ils montent bien mieux depuis quelques instants.
Cyrano. De cette gymnastique, ils ont pris l’habitude !
Roxane. Je vous parle en effet d’une vraie altitude !

Cyrano: É que é noite,
Nesta sombra, tacteando, elas procuram a vossa orelha.
Roxane: As minhas palavras não têm esse problema.
Cyrano: Elas encontram-me rapidamente? É normal,
Pois é no meu coração que as recebo;
E eu, tenho o coração grande, vós, a orelha pequena.
Por outro lado, as vossas palavras descem: vão mais depressa,
As minhas sobem, Madame: precisam de mais tempo!
Roxane: Mas elas sobem bem melhor depois de alguns instantes.
Cyrano: Desta ginástica, criaram o hábito!
Roxane: Realmente falo-vos de uma grande altitude

Pode assistir-se à cena completa aqui, com legendas em inglês. E assistimos a Roxane, deliciada com as palavras de Cyrano, mas imaginando-as na boca de Cristiano, a quem ama cada vez mais por tudo o que lhe diz. Há pensar Cristiano e há ouvir Cyrano. Este, na cena final, diz que não nos batemos na esperança de ter sucesso e que é muito mais belo quando nos batemos inutilmente. É uma visão poética, o mérito do que luta para nada conseguir, que talvez só aqueles que se batem inutilmente abracem, à falta de melhor. Cyrano que amava secretamente Roxane e a viu amar outro nas palavras dele.

Cristiano, Cyrano, o meu nariz, a minha pluma.

 

Publicado por: Samuel | Julho 10, 2016

Do Mercador ao Bisonte: Ou de Como as Coisas se Interligam

O pensamento é um mar com água de muitos rios. Fascina-me o modo como as coisas nos levam através do mundo, umas chamando pelas outras, umas conversando com as outras. Quando, ao ler um determinado texto, encontro uma referência a uma obra, autor, local ou facto, sobre o qual aprendi nos últimos dias, tenho uma sensação de conforto como a de entrar numa casa conhecida, onde as paredes estão nos locais certos para a geografia dos meus passos. É um pouco como aquela sensação de estarmos a conhecer, aos poucos, uma cidade e de, de repente, percebermos que numa rua em que passamos muitas vezes, ao virar uma esquina, estamos noutra rua que também conhecemos bem. E o nosso mundo torna-se diferente porque não conhecemos apenas duas ruas, mas relacionámos as duas. Já não são duas ruas solitárias. E isso traz-lhe um nexo acrescido. Não se ligam só no mapa. Ligam-se, por processos para lá de lógicos, em nós.

Na maioria das vezes não conseguimos estabelecer qual o caminho que nos levou a determinada obra ou pensamento para além, talvez, do passo que demos anteriormente. Até porque tudo isso nos passa despercebido, com o cérebro fazendo o seu trabalho, e nós um pouco perdidos no turbilhão em que as nossas vidas se tornaram, constantemente bombardeados por estímulos sem conta, apreensão inconsciente do tudo para nada. Mas hoje, ao olhar para um bisonte, lembrei-me do tempo em que ele começou por ser mercador. O caminho não é curto.

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Há alguns anos, vi o filme “O Mercador de Veneza”, baseado na obra homónima de William Shakespeare. O filme, assim como o texto original, são belos, evocativos e poéticos. O filme, como não poderia deixar de ser, deixa algumas partes do texto de fora, como a que se segue, por exemplo, e que dá para perceber o quanto de bom este texto tem:

The man that hath no music in himself,
Nor is not moved with concord of sweet sounds,
Is fit for treasons, stategems, and spoils.
The motions of his spirit are dull as night,
And his affections dark as Erebus.

Mas o filme é também muito bom por causa da sua banda sonora, que descobri ser da autoria de Jocelyn Pook, também responsável, por exemplo, pela banda sonora de “Eyes Wide Shut“, de Stanley Kubrick. De entre as músicas da banda sonora de “O Mercador de Veneza” houve um par delas – a outra, de que não fala este texto, é esta –  que me impressionou pela voz do vocalista, o contra-tenor alemão Andreas Scholl. Ao ouvi-las várias vezes, reparei que a letra de uma delas era particularmente bonita:

The World was all before them, where to choose
Their place of rest, and Providence Their guide:
They hand in hand with wadding steps and slow,
Through Eden took Their solitaire way.

Paraiso[1]Quis depois perceber se se tratava de parte do texto de Shakespeare, mas rapidamente percebi que são os versos finais da obra “Paraíso Perdido” de John Milton. Querendo ler um pouco mais da obra, procurei as edições disponíveis no mercado e encontrei a edição bilingue da Cotovia, onde os referidos versos se tornam:

[…] Era à frente o mundo,
Onde escolher seu lar, e a providência:
Mão na mão com pés tímidos e errantes
P’lo Éden solitário curso ousaram.

Algum tempo depois, estava a folhear alguns livros ao acaso, numa livraria, quando um dos livros da estante me chamou a atenção porque o nome do autor me parecia familiar. Peguei no livro, abri-o, tentando perceber se conhecia algo, mas não me lembrava de alguma vez ter lido aquilo.

A pura simetria dos cantoneiros
concordes na sintonia clássica
da sua dança, no modo como desmantelam
a embriaguez, induzem o vómito a caixotes
ou dispõem de bolas de plástico
e as lançam para a baliza ruminativa
sem tempo para comemorarem os golos.

Pulgas da quietude,
industriosos entre o mar de detritos,
fosforescentes noctilucos,
espectros a céu aberto,
ídolos de montureiros,
aclarando das margens as nuvens rentes
sob aguaceiros desabridos.

Acrobatas da morosidade
fúnebre do seu curso,
a cidade ignora-os
ou execra aquele féretro deletério
se apanhada no cortejo de ocasião.

1507-1[1]Era, no entanto, algo que me agradava, uma poesia com a qual eu conseguia dialogar. Já na rua, com o livro debaixo do braço – sim, paguei primeiro -, lembrei-me, subitamente, que o autor, Daniel Jonas, era o tradutor de “Paraíso Perdido”. Foi a partir desse momento que passei a prestar mais atenção à obra de Daniel Jonas, o que me trouxe até à sua mais recente colectânea de poesia, Bisonte, lançada pela Assírio e Alvim.

Daniel Jonas  é, na minha modesta opinião de mero amador – a forma como alguns críticos profissionais escrevem sobre poesia talvez seja demasiadamente pretenciosa para interessar para alguma coisa – uma das mais interessantes vozes da actual poesia nacional. Não conheço nenhum outro com a sua capacidade de explorar a língua em toda a sua riqueza lexical – como se nota pelo poema acima – e de domar a forma do verso sem deixar que esta lhe discipline em demasia a forma das ideias.

Uma vez mais
a casa despida.
Lentas fotografias, moles molduras,
álbuns blindados, o pó de tudo,

o silêncio prevalecente
da despedida.
Uma casa mais
eu deixo.

Por vezes parece que
sou eu quem fica
e ela que me deixa.

E há em Daniel Jonas aquilo a que talvez se possa chamar uma “voz”, i.e., uma forma de estar na poesia que é um fio condutor da sua obra. E digo-o não no sentido de que  a sua poesia seja uniforme ou mono-temática. Longe disso. O conjunto da sua obra até ao momento mostra que não se amedronta em perseguir formas e ideias novas a cada livro. Uma mesma voz pode dizer coisas absurdamente diferentes, pode dizer algo e o seu contrário. Mas não deixa de ter o mesmo timbre e de se fazer transportar na mesma caixa de ressonâncias. A falta dessa força unificadora de obra sente-se em muitos dos poetas que se podem ler hoje – e que tédio a sucessão de madrugadas, flores, chuva e outros focos poéticos usados da forma mais banal.

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E aqui estamos, chegando do mercador ao bisonte. Já agora, não porque faça parte desta sucessão de descobertas, mas porque a capa deste livro me fez lembrar a capa do album Arrow, dos Heartless Bastards, fica também a canção desse album de que mais gosto, “Only For You“.

E dizem-me que não há mais espaço nesta página. Por isso, e só por isso, paro por aqui.

 

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